domingo, 25 de fevereiro de 2018

O Palácio da Ventura



por Antero de Quental

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Zênite



por Davi Simões

Nascer novamente
É função de cada homem
Conforme a capacidade mórbida
De amante do Espírito
O que requer vontade de morte

É quando então
Que ergue-se o sol
O zênite é o prenúncio diário
De todo inferno

O ídolo; que de tão puro
Não autoriza ser contemplado
Ele não quer ser visto
Mas vestido de luz
Fornece o milho e o pão

Abre os sentidos, homenzeco
Que serias mais
Que um alimento e um dejeto
Pois a função de um Deus
É sacralizar tudo

Somente a fogueira cura
Os homens-sem-Espírito
Somente o fogo
A alma gloriosa do sol

Melancolia



por Davi Simões

Noite abafada
Madrugada no meu pátrio Ceará
Precisamente no reduto jangadeiro
A uma centena de metros do mar

Contemplo o reflexo nas vidraças
De uma lua virginal, crescente
Sangue e suor
Vidro e concreto
Construíram arranha-céus imponentes

Trabalhadores e estudantes descansam
Das suas vidas vulgares e inúteis
Implodam as colmeias humanas!
O progresso pariu homens fúteis

Tal horário é o limbo
Nenhum homem na rua
Silêncio...
Carne nua
Minh’alma crua

Cântico do Irmão Sol



por São Francisco de Assis

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a noite.
Ele é belo e jovial
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que as sustentam em paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu senhor,
Pela irmã nossa, a morte corporal,
Da qual nenhum ser vivente pode escapar
Ai daqueles que morrerem em pecado mortal:
Bem-aventurados os que ela encontrar
Na tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.

Amor Cortês



por Davi Simões

Como devanear
Sobre um assunto tão gasto
Se o que sinto por ela
É um amor tão casto?

No coração cavaleiro
É a glória que chama
Ao miserável escudeiro
O amor da dama

Aquela donzela
Decidi imortalizar
Já que nem infante sou
Para sua mão implorar

Amor paixão
Ou amor sentimento
Ficamos enfim
Saudade e lamento...

Não Há Felicidade ao Nível do Mar



por Davi Simões

Daqui o sol é insuportável
Mas amanhã já devo partir
Sonho com neblina e vida pulsando
Que os corvos não me deixem dormir

Nada me acaricia como o silêncio
Nem mesmo o “Messiah” de Handel
Que as montanhas dominem o horizonte
E o cinza cubra o céu

Carrego o estandarte
Como um arauto vertical
Vassalo da corte do Rei
Declamando odes ao mal

Desde o cimo respiro ar puro
Com visão de harpia, predador
Caçando o cume da alma
No vácuo de mim mesmo nasce o amor

Somente desta vez cantarei
Deve ser a última:
Não confieis no demônio
Que crê necessário viver com agror

Saudade Cantada



por Davi Simões

Canta a meretriz
Canta o enamorado
Que exalta em sarau

Canta o amado
Ao som da rabeca
Romances trovadorescos
Derramamento seminal

Canta em si maior
O homem menor
Já não canta, escuta

Canta até o bárbaro:
Quem ama mata!
O que não é bom
Nem é tão mal

O Fascio é o Foco



por Davi Simões

O fato é que o fascio é o foco
Mas o foco não é fácil
Nem o fascio é um fóssil
Porque o fogo do fascio é um fato

Porém, se o fácil não é o foco,
o que é o fascio de fato?

Um Barco Carregado



por Johannes Tauler

Um barco carregado
singrando vem no mar,
trazendo o Filho amado
o Verbo milenar.

O barco vai suave,
em meiga e santa luz.
Não é qual outra nave,
pois nele vem Jesus.

O mastro altivo e forte
é Deus Consolador,
ele é o real suporte
da vela que é o amor.

O barco chega à terra
por força divinal;
mistério santo encerra
presente celestial.

Menino-Deus amado,
nascido no desdém,
será à cruz pregado;
é nosso sumo Bem.

E quem com alma ardente
ao Filho se achegar
aprende humildemente
a sua cruz levar.

Enfrenta morte e inferno,
firmando-se em Jesus,
recebe o dom eterno,
herdando vida e luz.

Virgem Ama



por Davi Simões

A Ti clamamos
Por intercessão
A Ti oramos
Em contemplação

Virgem ama
Pêndulo da terra
Terra onde matura
O fruto do lar

Em Ti habita
Amor bruto
E penetrante

De Ti emana
Luz bendita
Como farol ao mar

Guia-nos
À Vossa morada
Que é nossa

És princípio
Mãezinha querida
Que não assombra
Pisa a serpente

Mãe de Deus
Irmã dos homens
Bendita seja
Vossa semente

Santo Herói



por Davi Simões

Oh Senhor!
Pai das almas turvas
Que após incontáveis guerras
Veio aos bárbaros
Quem absolve as ditas almas
Desde o evento do Gólgota

Às armas, Cristão!
Armaduras, batinas
Espadas inquebrantáveis
E a cruz

Confessa-te, gentil!
A lança é a verdade
Teu vício
E a cruz, a justiça
Teu alívio

Sempre em frente
Santo herói
Escudos, brasões
Altivos confrades

Verbum



por Davi Simões

Martírio e flores solares
Em catacumbas citas
Que Cristão não possui
A intrepidez de um Macabeu?

Seria eu profeta,
Apóstolo ou eremita
Se não fosse a alegria
Ao negar-me

Minha certeza
É o desdém
Mortificação
Transvalorização

A alfama que repele-me
É o contentamento
Que acolhe-me
Ao negar-me

A busca do Verbum
Maldita poesia

Sou um estrangeiro
Estou sempre de passagem
E é só lembrar que
Pertenço ao homem médio
Para sentir-me mais vil
E diminuto

Não sei mentir
Tomara mesmo que eu sofra
Tomara que a vitória
Não venha nunca

Sou ninguém!
Medicado por Avicena
Por hora vivo
No fundo de uma cela

Belíssima Vontade



por Davi Simões

Evoco a Vontade
Que insulta o que é covarde
Na ausência da coragem

Evoco a Vontade
Que amigada ao impulso
Mata a imobilidade

Evoco a Vontade
Sedutora da persistência
Sim, santíssima verdade!

Evoco a Vontade
Intransigente salvadora
Doce redentora

Belíssima Vontade
Entrego-te minha sorte
Assuste a lógica
Conduza-me à morte!

Rosa Mística



por Davi Simões

Sem o sol não haveria a rosa
Então se a rosa é Maria
O cereal é Deus
O pão da alma

Minha Caça Alcancei



por São João da Cruz

Num lance de amor voei,
e não de esperança falto,
subi tão alto, tão alto
que minha caça alcancei.

Para que eu alcance desse
a êsse lance, no entanto,
foi preciso voar tanto
que de vista me perdesse.
Mas mesmo assim deparei
no vôo quedar-me falto:
o amor porém foi tão alto
que minha caça alcancei.

Quanto mais subia
ofuscava-se-me a vista,
e quão maior a conquista
mais escuro se fazia;
mas sendo do amor a lei,
dei um cego e obscuro salto,
e fui tão alto, tão alto,
que minha caça alcancei.

Quanto mais alto chegava
nesse lance tão subido,
tanto mais baixo e rendido
e abatido me encontrava.
“Ninguém alcança!” exclamei;
e bati-me tanto, tanto,
que fui tão alto, tão alto,
que minha caça alcancei

Num único (que estranho era!)
mil vôos minh’alma avança,
porque do céu a esperança
tanto alcança quanto espera;
só por tal lance esperei
e em esperar não fui falto
pois fui tão alto, tão alto,
que minha caça alcancei.